Em novembro de 2015 tive a oportunidade de realizar uma tão esperada viagem à Bélgica. Muita gente que gosta de cerveja considera o país a Disneylândia da bebida. Mas este período acabou se tornando uma época de clima tenso para se viajar pela Europa. Os atentados ao Bataclan em Paris haviam acabado de acontecer e para piorar alguns dos terroristas tinham origem na cidade de Bruxelas. Felizmente na semana que chegamos à cidade os níveis de alerta de segurança cederam e a alegria típica dos belgas voltou a ganhar a cidade. Assim um dos pontos altos do meu planejamento pode se concretizar: a visita à emblemática produtora de lambics Brasserie Cantillon.
É pertinho da Gare du Midi, maior estação de trem da cidade de Bruxelas.
Lá aprendi que os cervejeiros dos nossos dias não deixam que nada aconteça ao sabor da sorte quando estão preparando suas cervejas. A fermentação espontânea, lá da origem da bebida, foi substituída pelo controle total do processo e das leveduras. Hoje só existe uma cerveja que continua sendo feita com os métodos de fermentação primitivos: a Lambic, típica de Bruxelas na Bélgica e o único tipo que se produzia por lá até meados do século XIX.
Na década de 1960 até o início dos 1990 houve um grande declínio na produção de lambics e muitas cervejarias tradicionais foram fechadas. Daí em diante o mercado passou a ser dominado por empresas com modernos sistemas de produção e pasteurização, que produzem cervejas adocicadas chamadas de “pseudo” Lambics pelos tradicionalistas. Para resguardar a história e preservar os processos originais e autênticos do passado, a Cervejaria Cantillon resolveu criar em 1978 o Museu da Gueuze de Bruxelas. A missão deles é promover e preservar a autenticidade da produção das Lambics que hoje se resume a pouquíssimas cervejarias. Além da Cantillon, ainda mantêm a produção cervejarias como Boon, De Cam, Drie Fonteinen, Lindemans, Timmermans e Girardin. Nas últimas décadas, o interesse pelas cervejas tradicionais cresceu no mundo todo, o que trouxe um novo alento aos empresários.
A Brasserie Cantillon é um ícone em Bruxelas porque talvez seja a única que ainda mantenha sua própria filosofia peculiar de produção, tempo de elaboração e sabores, muito diferente, como eles dizem, das cervejarias modernas. Fundada em 1900 por Paul Cantillon, a cervejaria que leva o nome da família, com sede em Bruxelas, era na época da inauguração apenas mais uma das centenas que existiam na cidade. Hoje a empresa sobrevive e preserva sua atividade de modo singular, administrada pelos bisnetos de Paul: Jean, Magali e Julie Cantillon.
O passeio pelas dependências da Cantillon é algo muito divertido para quem se interessa por cerveja. É mais ou menos como voltar ao passado e imaginar como funcionavam as antigas cervejarias de um país tão ligado a bebida como a Bélgica. O endereço é o bairro de Anderlecht, não muito distante da Gare du Midi, a maior estação de trens da cidade.

É pertinho da Gare du Midi, maior estação de trem da cidade de Bruxelas.
Para quem conhece São Paulo, o bairro lembra o Bom Retiro ou a Barra Funda, cheio de imigrantes, ruas de prédios baixos, galpões e construções com jeitão industrial. Com um desses mapas de turista não é difícil encontrar a Rue Gheude número 56. Apesar de ser a sede do Museu da Gueuze de Bruxelas, não lembra em nada museu convencional. A fachada se resume a apenas uma porta fechada sem placa de boas-vindas e que te deixa na dúvida se você chegou ao lugar certo para a visitação. Checamos o mapa, tudo ok, então fomos entrando. Do lado esquerdo dava pra ver um desses escritórios envidraçados que a gente encontra nos galpões de fabriquetas antigas. Logo em seguida um espaço que parecia um pequeno bar, algumas pessoas com cara de turistas bebendo e um longo corredor de que dava a impressão que você havia voltado ao começo do século. Um pouco à direita da entrada, ainda não havíamos notado, mas havia um pequeno balcão onde um simpático senhor, espécie de host da Cantillon, nos recebeu. Sete euros a visita (que valem muito a pena, pois no final da você faz uma degustação de 3 cervejas da casa) e as instruções em umas das quatro línguas que o anfitrião falava. Ouvimos sobre a história das Lambics e Gueuzes, a administração familiar e centenária da cervejaria e como funcionava o auto tour. Iriamos andar sozinhos pelos corredores da fábrica, que funcionava normalmente, a todo vapor por sinal, ler sobre cada uma das salas na brochura que recebemos e nos divertirmos. Fotos à vontade e o único porém: não ficar mexendo nos equipamentos, já que a galera estava trabalhando. Entendido. Vamos lá então a nossa visita ao Museu “vivo” Gueuze de Bruxelas.

Só me restou uma foto borrada (da esquerda) do que vem logo após a porta da rua, mas tá aí pra registrar. Abaixo, o patriarca Cantillon.
Passamos por um corredor desviando de caixas, garrafas, maquinário antigo e chegamos a sala número 1. Ali acontece a “mescla” da matéria prima para a produção de Lambic: 35% de trigo (450 kg), 65% de malte de cevada (850 kg) e lúpulo (22 kg). Os cereais são moídos (a trituradora fica na sala 2) e vão para a “caldeira de mescla”, onde acontece a brassagem. Resumidamente, em duas horas a temperatura sobe de 45° para 72°C e ocorre a sacarificação, em seguida a decantação. É adicionado mais água para extrair os açúcares. O mosto é bombeado então para as cubas de cocção (sala 2). Nessas etapas são utilizados mais de 10.000 litros de água.
Na sala 2 ficam as caldeiras de cocção. Foi ali que percebemos um nobre membro da família Cantillon, o cachorro da Julie, uma das donas. O danado passeia livremente entre os equipamentos como um funcionário qualquer. Esta é mais um dos elementos que deixam essa visita tão leve e divertida.
Nesta sala o mosto se mantêm em ebulição entre 3 e 4 horas, o que provoca a esterilização do líquido e evaporação de cerca de 2.500 litros de água e consequentemente a concentração dos açúcares (quanto maior a concentração, mais alto o teor alcoólico, que no caso dos produtos da Cantillon, fica em 5%). Mas antes que a ebulição comece, é adicionado ao mosto lúpulo com três anos de idade. Isso mesmo: lúpulo velho para que a cerveja não fique muito amarga. Nas cervejas Lambics, mais que em outras, o produto tem a função de conservante, por isso cervejarias como a Cantillon utilizam 2 a 3 vezes mais que as cervejarias convencionais. Esse lúpulo então é filtrado e os 7.500 litros restantes de mosto que sobraram da ebulição são bombeados para a tina de resfriamento que fica na sala 4.
Na sala 3 é onde ficam armazenadas as sacas de trigo, cevada malteada e o lúpulo. O material permanece aqui entre outubro e abril, período em que a cerveja é feita. O cachorro da Julie adora cheirar, fuçar e correr entre as sacas.
A sala 4, a da tina de resfriamento, talvez seja o local mais legal da fábrica em dia de produção de cerveja, como na nossa visita. A grande “piscina” de cobre vermelho onde o mosto permanece, fica bem pertinho dos olhos e narinas dos visitantes. Ali a gente sente com toda a intensidade o “cheiro de pão” do malte cozido! A tina é bem rasa, mas tem uma superfície grande que favorece o resfriamento, nela o mosto deve alcançar entre 18 e 20°C. Dependendo das condições do dia (temperatura, ventos, chuvas, etc.), os funcionários abrem ou fecham várias persianas situadas na sala para aumentar ou reduzir a ventilação. Esta operação é feita a noite, por isso é importante, para pegar essa etapa funcionando, chegar não muito antes do final da visitação, às 17h, e ficar até o fechamento para os turistas, às 18h.
A época fria do ano é a apropriada para que o mosto seja semeado pela multiplicidade de leveduras selvagens únicas que se encontram no ambiente. O líquido esterilizado nas caldeiras de cozimento é fecundado por fermentos naturais (bactérias e leveduras) quando alcança a temperatura de 40°C. Pesquisadores da Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica, identificaram em um só tipo de lambic 100 cepas diferentes de leveduras, 27 de bactérias acéticas e 38 de bactérias lácticas. São esses microrganismos que provocam a fermentação espontânea que acontecerá nos barris na etapa seguinte. Duas leveduras são muito importantes na fermentação da Lambic: a Bretanomyces Bruxellensis e a Lambicus. Ambas metabolizam a dextrina, que é um açúcar não fermentável, o que faz com que a cerveja, ao final do processo, tenha uma quantidade insignificante de açúcar (cerca de 0,2%).
Na cervejaria Cantillon, todos creem que esse tipo de fermentação só se dá na região de Bruxelas e no Vale do Senne, um rio de aproximadamente 100 km que atravessa a cidade de Bruxelas.
Lembrando que até 1860, ano em que Pasteur fez descobertas importantes sobre leveduras, todas as cervejas eram de fermentação espontânea. Hoje a lambic é a única cerveja nessa categoria no mundo. Na manhã seguinte, a bebida resfriada passa para o tanque de transferência onde se determina o volume do extrato doce que se transformará mais tarde em álcool.
Sim, o texto está gigante, mas ainda tem mais. Na próxima semana, visitaremos a sala dos barris, dos blends, engarrafamento, maturação e estocagem.
Acompanhe aqui a segunda parte da matéria.
Fonte: Material de apoio ao visitante, divulgação e pesquisa do Brussels Gueuze Museum.
Grande Anselmo!
Show de bola o texto e as fotos.
Imagino que deva ser uma experiência fascinante conhecer a fábrica da Cantillon e ainda mais com uma visita onde vc anda a vontade..
Abç
Guzzon
Valeu Guzzon! Essa parte de poder andar lá por dentro a vontade, e sem ninguém te vigiando, talvez seja o mais legal mesmo. Abração!
Excelente texto, Anselmo! Já tá na lista do meu Eurotour 2018, hehe
Dica: leiam o texto com a voz do Anselmo da cabeça, fica muito mais engraçado!
Valeu José! Amanhã tem Beercast sobre essa visita à Cantillon, vai dar pra ouvir a história com a minha voz 😀
Deve ser uma das visitas cervejeiras mais legais de se fazer. Texto muito bem escrito!
Valeu Flavio. O material de referência da cervejaria para a visitação é muito bom e isso facilita as coisas.
Abração!
Fantástico Anselmo, melhor que isso só indo mesmo.
Vc falou uma gde verdade, as pessoas ainda vivem na ilusão de cerveja sendo feita de forma rudimentar, a maioria (principalmente na europa) já investe em qualidade, em termos de repetição, além disso os órgãos responsáveis pelo saneamento básico já pegaram mto no pé dos cervejeiros.
Um detalhes, antes de Pasteur nem toda cerveja era de fermentação espontânea pois os produtores utilizavam se da mesma barrica, de uma quantidade da cerveja feita anteriormente, de pão e outras técnicas para garantir que sua bebida ficasse igual mas é lógico que não sabiam da relação das leveduras nesse esquema, só sabiam que fzd isso conseguiam repetir uma receita.
Assim tb se criava as primeiras seleções de cepas.
Abraços.
Valeu Luquita.
Por esse ponto de vista é verdade, mesmo que empiricamente, os cervejeiros já faziam fermentação controlada no passado. Mas provavelmente era impossível evitar que um pouco de leveduras do ambiente invadisse os barris ou a cerveja em alguma outra etapa do processo, acho eu.
Seria legal mais textos de nerdices sobre leveduras, heim?
Abs!
Ah sim, tenho que concordar que as cervejas invariavelmente acabassem contaminadas em algum processo, até por isso a validade naquela época deveria ser minuscula até a chegada do lúpulo.
Esse tema não domino bem mas vale a pesquisa rs.
Fala Anselmo!
Que sensacional seu relato. Me arrependo até hoje de não ter conseguido ir na Cantillon, mas tua descrição já ajuda a diminuir esse sentimento.
Muito legal saber como esse tipo de cerveja é feito, todos os passos. Bem curioso a cadela de uma das donas zanzando por lá. O tipo de coisa que se acontece por aqui a vigilância sanitária fecha a fábrica na hora!
Pelo que entendi a cerveja fica nas tinas abertas por algumas horas só, para que os microrganismos sejam inoculados naturalmente, certo? E depois, vai para tanques fechados para fermentar ou só para outra sala mas ainda abertos?
Abraço!
Fala, Anselmo!
Párabes pelo relato, ficou show!
Fiquei com a mesma dúvida do Daniel, fico no aguardo da resposta.
E aí Bruno?
Obrigado!
Tem uma segunda parte na semana que vem.
Respondi o que sei sobre a troca do resfriamento para os barris aí em baixo para o Daniel.
Abs!
Vaaaleu Anselmo!
E aí Daniel? Valeu!
Nos materiais que li sobre o processo, eles dizem que a cerveja sai diretamente do tanque de resfriamento para os barris. Nas vendo o espaço que têm lá, não dá pra entender direito como isso é feito. Uma sala fica ao lado da outra, mas parece que faria mais sentido se houvesse um equipamento intermediário para essa etapa. Não consegui descobrir como é feito na prática.
Fora o cachorro, ainda tem as aranhas. Eles não se preocupam de tirá-las das paredes :D. Escrevo essa parte no texto final da semana que vem.
Já tem planos para a próxima viagem?
Abs!
Realmente, deve ir direto do tanque de resfriamento pro barril, esqueci que lambics fermentam em barris.
Planos pra próxima viagem sempre tem. Falta é grana hehehe
Mas agora no 1o semestre deve rolar uma. Mais pra perto a gente conversa =)
Antes disso, Festival da Cerveja. Bora?
Sim, fermentam no barril até quase explodir! Eles tem um lá com tampo transparente, dá pra ver a cerveja dentro.
Provavelmente não irei ao Festival. Não me sinto motivado só pelas cervejas, provavelmente dá pra bebê-las em outras oportunidades. Vale a pena por causa dos amigos, aí sim. Mas não vai dar tempo pra mim.