A REINHEITSGEBOT – A Lei da Pureza da Cerveja
Por Rica Shimoishi
500 Anos de história completados nesse sábado (23/04/2016).
Não podíamos deixar de falar sobre esse assunto, não é mesmo?
Pra começar, lembremos que o Luquita já havia nos ensinado a pronunciar corretamente a palavra. Isso quando ele ainda fazia posts com frequência no blog. Vamos deixar o link pra vcs tentem aprender a palavra:
Lei da Pureza ou Simplesmente Reinheitsgebot
E em segundo lugar, vamos destruir ilusões:
A Reinheitsgebot conhecida como a “Lei da Pureza Alemã” que dizia que Cerveja só poderia ser feita com água, cevada e lúpulo, respeitada como inovadora por trazer em seu cerne um controle (mais) adequado na maneira de fazer cerveja, na verdade não era nada inovadora.
Já tinha havido uma porção de leis que tentavam organizar a produção e venda da cerveja. O Henrik Boden citou em seu texto sobre o assunto algumas das leis pré-Reinheitsgebot. Alguns exemplos:
Lei da cidade de Augsburg em 1156, de Nuremberg em 1293, de Munique em 1363 e de Regensburg em 1447.
Foram algumas ocasiões em que leis ou normas regulamentando a produção e comercialização de cerveja semelhante à Reinheitsgebot foram criadas na Alemanha.
Especificamente sobre ingredientes podemos por exemplo citar que em 1487 o Duke Albrecht IV criou um regulamento para que os ingredientes para produção de cerveja em Munique fossem apenas malte de cevada, lúpulo e água.
Outra lei, agora em 1493, promulgada na Bavária limitou os ingredientes à malte, água e lúpulo.
Mas não deram certo. Ou acabaram caindo em esquecimento.
A lei que deu certo foi mesmo a Reinheitsgebot de 1516.
A “Lei da Pureza Alemã” (que originalmente nem nome tinha) foi promulgada pelo Duque Guilherme IV da Bavária em 23 de abril de 1516. E diz a lenda que foi feita depois de uma baita ressaca provocada pela má qualidade da cerveja que o Duque bebeu. Conta-se que ele ficou tão irado que resolveu que só seria considerada cerveja a bebida feita com Cevada, Lúpulo e água. Dizem que a ideia era evitar principalmente elementos esdrúxulos à bebida.
Em parte, a lenda até poderia ser verdade porque, na busca por inovação, e mais ainda por diminuir os custos, os cervejeiros testavam ingredientes cada vez mais bizarros nas suas criações cervejísticas. Maurício Beltralmelli, em seu livro “Cervejas, Brejas e Birras”, por exemplo, diz que chegou-se a usar cal e fuligem nas cervejas.
Bem… A História é legal. Mas não é verdadeira. Ou, pelo menos, não inteiramente verdadeira.
Mas, por sinal, vocês já leram o texto da “Lei da Pureza”?
Não? Ela é meio chatinha se a gente mantiver os termos originais. Então fiz uma versão simplificando termos para um melhor entendimento. Ela dizia mais ou menos o seguinte:
REINHEITSGEBOT
Vimos por meio desta anunciar e decretar, por Autoridade de nossa Província, que a partir de HOJE, no Ducado da Bavária, no país, bem como nas cidades e mercados, as seguintes regras aplicam-se à venda de cerveja:
Do dia de São Miguel (29 de setembro) a São Jorge (23 de abril – HOJE), o preço de 1 LITRO* de cerveja, não pode ser superior a 1 CENTAVO**.
Decretamos ainda que do dia de São Jorge (23 de abril) ao dia de São Miguel (29 de setembro) 1 LITRO de cerveja não pode ser vendido por mais de 2 CENTAVOS e 1 COPO*** por não mais de 1 CENTAVO E MEIO.
Se o cervejeiro possuir outra cerveja que não a de verão, ele não poderá vendê-la por mais de 1 CENTAVO por LITRO.
Além disso, enfatizamos que, no futuro, em todas as cidades, nos mercados e no país, os únicos ingredientes utilizados para a fabricação de cerveja devem ser cevada, lúpulo e água.
Se isto não for cumprido, a punição será a seguinte:
Todo aquele que conscientemente ignorar ou transgredir esse decreto, será punido com o confisco dos barris de cerveja pelas autoridades judiciais, sem falha.
Mas um comerciante no país, cidade ou nos mercados pode comprar dois ou três baldes de cerveja (contendo 60 LITROS) e revendê-lo novamente para o campesinato comum cobrando MEIO CENTAVO a mais por LITRO ou por COPO.
Mas, caso aconteça uma escassez e um subsequente aumento do preço da cevada (considerando os diferentes locais e tempos das colheitas), O Ducado da Bavária terá o direito de ordenar reduções para o bem de todos.
Assinado: Duque Guilherme IV da Bavária em 23 de abril de 1516 em Ingolstadt.
OBS.
*Na verdade, o que chamei de 1 LITRO era 1 MASS BÁVARO (equivalente a 1,069 Litros) no texto original.
**O Centavo era chamado de Pfennig e a metade dele (meio centavo) de Heller.
***O que chamei de COPO era o tal do KOPF, um recipiente que cabia pouco menos de 1 MASS BÁVARO.
Quando a gente lê a lei original de 1516 dá prá perceber que existe uma preocupação bastante grande na lei em tabelar os preços das cervejas. Mais do que sobre a cerveja em si.
Além disso a lei nem era pra toda a Alemanha (na Época parte do Sacro Império Romano Germânico). E embora a Bavária abrangesse até a República Tcheca, não incluía o norte alemão. Que, portanto, estava livre da Reinheitsgebot. O Márcio Beck e o Henrik Boden falam da Gose (uma cerveja com sal e coentro) que se produzia em Leipzig e das Berliner Weiss com trigo. Livres da Reinheitsgebot.
Portanto não é uma lei alemã. E sim uma lei bávara.
Só para situar vocês geograficamente, a Baviera (ou Bavária)* fica no Sul-Sudeste da Alemanha e onde Munique (sua capital) é uma de suas principais cidades.
*OBS. Existe uma discussão lexicográfica a respeito do termo. Usa-se Baviera (do francês Bavière) ou Bavária (do inglês Bavaria). Baviera é mais usado e oficialmente correto, mas o termo derivado do inglês ganhou força nos últimos trinta anos e já há quem considere a forma mais adequada do que a outra.
Se por um lado como bem nos ensinou o Fabian Ponzi em seu texto sobre o assunto que várias cervejas que eram tradicionalmente brassadas caíram na ilegalidade como gruitbier, uma cerveja que levava ervas como a lavanda, o alecrim e o zimbro na sua receita, e a köttbusser, feita com aveia, mel e melaço.
É inegável, que como segurança alimentar, a lei foi importantíssima e uma das mais longevas nesse sentido.
Sim porque isso ajudou a normatizar a forma de fazer cerveja e embora por um lado tenha limitado a “inventividade” dos bávaros, por outro ajudou a dar consistência à receita fazendo-os buscar o aprimoramento da receita selecionamento melhor os ingredientes “únicos”.
Mas a gente diz “FOI” porque embora a gente romantize a lei, ela foi bastante modificada ao longo dos anos.
Percebam que nem de fermento (levedura) a lei falava. Isso foi incluído bem mais tarde (no século XIX) depois dos estudos de Louis Pasteur que, pela primeira vez demonstrou a existência das leveduras na cerveja. E que em 1864 propôs o primeiro modelo de pasteurização.
Outro problema: Como assim “cevada”? E o trigo? Não se fazia cerveja de trigo nesse época?
Sim. Fazia-se. E, por sinal, a Weissbier era bastante apreciada, inclusive pela Casa Ducal. Mas a produção de trigo, bastante mais restrita que a de cevada, era disputada entre padeiros e cervejeiros.
Proibindo o uso do trigo pelos cervejeiros o Duque resolvia o problema do desabastecimento da matéria prima para fazer pão. E cerveja pro Ducado. Sim, porque apesar da proibição, a Nobreza continuava a tomar cerveja de trigo. Ou melhor “bebida fermentada de trigo”. Pela lei não era cerveja né?
“Para os amigos TUDO. Para os inimigos, a lei.” Como dizia o ex-presidente brasileiro Arthur Bernardes.
Mas não só isso: a ideia de se fazer uma lei que excluía o trigo tinha outras motivações. Cervejas de trigo eram feitas há séculos na Alemanha e naquele momento o clã Degenberg era detentora dos direitos de produção. O Guilherme IV era de outra Casa Nobre, a de Wittelsbach. Ao proibir o uso do trigo diminuía grandemente a força econômica da casa rival.
Mas estranhamente, isso mudou em 1602 quando o Sigsmund Degenberg morreu e como não tinha herdeiros suas propriedades passsaram para o Ducado e, diante disso, Maximilian I, neto do Guilherme IV passou a fazer “vista grossa” às WeissBier.
E mais ainda: Em 1516 quase toda a produção de cevada era feitas pela realeza!
Diminuia-se a força dos rivais ao mesmo tempo que aumentava o próprio poderio financeiro!
Outro fator econômico que influenciou a assinatura da lei: O lúpulo.
Vivia-se a época em que o que se usava era o tal do Gruit. Uma mistura de ervas que era usado para conservar e, principalmente para aromatizar a cerveja. Ocorre que o Gruit era controlado (e taxado) pela igreja católica o que fazia com que seu uso reforçava o poder da Igreja o que incomodava o Ducado. Obrigando o uso do lúpulo, diminuía-se a força da igreja católica dentro da Bavária.
Mas, além disso, a Liga Hanseática uma aliança entre cidades, que dominava o comércio no Norte da Europa desde há muito tempo usava o lúpulo em suas cervejas com bastante sucesso principalmente na Holanda.
Então, conta-nos mais uma vez o Márcio Beck, a Bavária estava simplesmente tentando alcançar a concorrência.
A Reinheitsgebot foi mudando ao longo dos anos conforme a essência da cerveja era melhor conhecida, havia mudanças políticas e/ou havia mudanças econômicas que interessavam à Bavária e mais tarde à Alemanha.
Primeiro ocorreu a mudança de cevada para “malte de cevada”. Depois acrescentou-se a levedura aos ingredientes básicos da lei.
Depois legalizou-se a fabricação de cervejas de trigo.
Em 1806 tirou-se da lei o termo “malte de cevada”, conservando-se somente a palavra “malte”.
Em 1952, sob a Lei Fiscal da Cerveja (Biersteuergesetz) a Reinheitsgebot foi praticamente engolida.
Ela foi atualizada aos novos tempos. Mas essa lei tb era marota e escondia em suas entrelinhas uma “reserva de mercado” às cervejarias alemãs.
Ela permitia que as cervejas permanecessem sob o guarda chuva da Reinheitsgebot mas com diversas concessões:
Agora podia-se acrescentar maltes de diversos cereais, açúcar de cana, açúcar de beterraba, açúcar invertido puros, de glicose e corantes obtidos a partir desses açúcares.
E mais (tá aí a malandragem) os cervejeiro podiam acrescentar outros elementos à cerveja diferente das acima mencionada desde que fossem para a exportação, cervejas caseiras ou para estudos científicos.
Sim. Isso quer dizer que mesmo que vc compre uma cerveja de estilo alemão importada da Alemanha pode ser que ela contenha milho, arroz, e outras coisitas…
Mas isso não valia para cervejas importadas para a Alemanha.
Ou seja: Podia-se exportar cervejas fora da (nova) Reinheitsgebot, mas importar era proibido.
A Alemanha começou a ter problemas com isso em 1984, quando a Comunidade Européia percebeu (ou passou a agir contra) essa sacanagem na Lei Alemã.
E citando o princípio da Desproporcionalidade entrou com uma ação em que se pedia que a Alemanha abrisse seu mercado para os outros países membros.
A Alemanha tentou de diversas maneiras evitar que isso ocorresse. Inclusive pedindo que, então, as cervejas que entrassem no mercado alemão fora da Reinheitsgebot não fossem chamadas de BIER.
Mas como era de se esperar a Alemanha perdeu a parada.
A Reinheitsgebot faz parte hoje do código tributário de 1993. E é mais uma instituição do que uma lei de verdade. Segue-a quem quer. Mas não podemos esquecer de que ela vigorou em sua essência por quase 400 anos.
Por isso os Alemães querem transformá-la em Patrimônio da Humanidade.
Quase todas as cervejarias na Alemanha seguem esse princípio. Mas vcs já pensaram se as cervejas continuassem sendo feitas somente com malte de cevada, lúpulo, água e levedura?
Não se poderia colocar açúcar, não se poderia carbonatar, não se poderia fazer o acerto na qualidade da água (semana passada, inclusive, o leitor Leonardo Trevisan nos enviou um e-mail falando que o uso do sulfato de cálcio na água permite melhorar o amargor do lúpulo).
Em seu artigo sobre o assunto, o Henrik Boden ainda fala de técnicas proibidas até hoje como a dos Nutrientes pra leveduras, lúpulos tratados e lavagem ácida.
OU seja: Fazer cerveja boa seria um desafio MUITO MAIOR do que o que é hoje.
Claro que é legal. É histórico, é romântico fazer uma cerveja dentro da antiga Reinheitsgebot. Mas uma cerveja que não segue a Reinheitsgebot tb pode ser boa. Muuuito boa!
Fontes de Pesquisa:
(Livro)
Beltramelli, Maurício
Cervejas, Brejas e Birras: um guia completo para desmitificar a bebida mais popular do mundo. São Paulo: Editora Leya, 2012.
(Sites)
http://blogs.oglobo.globo.com/dois-dedos-de-colarinho/post/mitos-fatos-da-reinheitsgebot-lei-de-pureza-da-cerveja-alema-565400.html
https://chefcervejeiro.com/2015/04/24/499-anos-de-reinheitsgebot/
http://www.cervejahenrikboden.com.br/reinheitsgebot-lei-de-pureza-alema/
http://www.bebendobem.com.br/2013/04/reinheitsgebot-o-alvo-da-vez/
https://pt.wikipedia.org/wiki/Reinheitsgebot
http://www.brejas.com.br/reinheitsgebot.shtml
https://fenypapachristou.wordpress.com/2013/10/20/landkarte_deutschland-png/
Ola!!! Sabe me dizer se temos cervejarias artesanais brasileiras que seguem a risca esta “lei”?
Fala Pablo! Temos várias na questão dos ingredientes, posso citar aqui a Bamberg (interior de SP)… mas tem uma série delas por todo o Brasil. Seria bom se a questão do preço e qualidade também fossem válidas, hein?
Grande abraço.
Renato
Fala Rica, tudo certo?
Ficou muito legal seu texto e a pesquisa sobre a Reinheitsgebot. Hoje é mais uma filosofia do que uma lei, mas foi bem importante para praticamente definir a escola alemã de cerveja. Além do mais, posso estar falando besteira, mas acho que por mais que não seja obrigatório seguir, a cervejaria alemã que não o fizer não é muito bem vista entre os locais. Só uns malucos mais recentemente que estão desafiando esse paradigma.
Só por curiosidade, é possível carbonatar sim estando dentro da “lei de pureza”. Ao invés de usar açúcar como priming, usa-se um pouco do mosto “verde” de outra brassagem. É um cálculo mais chatinho mas é possível fazer e os alemães se especializaram nisso, justamente pela necessidade.
Obviamente que há também a alternativa da carbonatação forçada por CO2 e creio que ela não fere a lei.
O acerto da água já é um desafio mais complicado mesmo. Em termos de pH, é possível baixá-lo usando malte acidificado, o que não fere a lei propriamente. Os maltes mais escuros também tem essa propriedade, mas escurecem a cerveja e alteram o perfil de aromas e sabores, o que muitas vezes fere o estilo. Realmente, ajustar os sulfatos e cloretos é meio difícil dentro da lei, mas aposto que eles devem dar um jeito.
Abraço
Fala Daniel!
Sim. Vc tem razão. O embora o cervejeiro caseiro alemão esteja “liberado” de seguir a (nova) Reinheitsgebot a tônica, até hoje, é seguir a lei. Acho que é uma maneira bacana de manter a tradição que foi tão importante para definir o estilo da Escola alemã.
Quanto à carbonatação, pelo que sei, não se pode usar cilindros de CO2. Usar o mosto de outra cerveja eu não sei, mas deve ser permitido sim. hehe…
Eu não entendo muito do assunto, mas eu li que o uso de ácidos para o acerto do pH é proibido, mas a adição de 2 sais são permitidos: o cloreto de sódio e o gympsum. Mas desde que esse acerto leve a uma água que já exista na natureza (pelo menos foi isso que eu entendi).
Uma coisa interessante é na parte de nutrientes para leveduras: proibidas. Mas os cervejeiros usam tubulações de zinco para “sem querer” levar esse nutriente para a cerveja…
Ou seja o “jeitinho” tb funciona na Reinheitsgebot alemã. Quem diria?!
Forte Abraço!
Rica
Fala Rica!
Então, não é uma adição de ácido e sim um malte especial que na fabricação dele ele acaba acidificando (pelo menos é o que eu sei hehe). É um tipo de malte de cevada, então não fere a lei.
E existem já nutrientes de levedura que também não ferem, porque são basicamente feitos de leveduras mortas.
E sim, adicionar o mosto de outra cerveja é liberado, esse eu agarantcho =)
Valeu!
hahaha… Legal! Mas, como vimos, seguir a Lei da Pureza é bastante complicado. Por isso quem a segue e consegue fazer boas cervejas merecem nossos aplausos. De pé.
Abração!