Continuamos aqui o post da semana passada, descobrindo como a Brasserie Cantillon produz as melhores lambics do mundo.
A sala 5 se divide em duas partes, a 5a é repleta de barris de carvalho ou castanheira de 250 a 500 litros. A principal função da madeira para o produtor de lambic é que proporciona a troca de gás com o exterior. A Cantillon trabalha geralmente com barris já utilizados por vinicultores que, durante a lenta maturação da cerveja, lhe trazem aromas vinosos. Depois de alguns dias nos barris, começa efetivamente a fermentação espontânea. Nos 3 ou 4 primeiros dias ela é tão violenta e produz tanto gás carbônico que os tonéis não podem ser fechamos sob o risco de explodirem. Na boca do barril a gente consegue ver uma espuma branca saindo. Aí vão embora entre 5 e 10 litros de cerveja. Três ou quatro semanas mais tarde, se dá o início da fermentação lenta, que já não tem mais perigo de causar explosões, e os barris são fechados hermeticamente. Acabou de nascer então a Lambic! Essa fermentação extremamente complexa dura pelo menos 3 anos.
Na produção de lambic, algumas das leveduras se unem e formam uma película que isola a cerveja do ar do tonel. Assim, nesse processo, não se utiliza a técnica de completar a perda pela evaporação nos barris, como acontece com o vinho. Porém, 20 % do líquido são perdidos no final do processo. É possível já beber a cerveja após algumas semanas do início da fermentação, embora o cervejeiro aguarde pelo menos um ano para apreciar uma cerveja mais fina e adequada para a elaboração de produtos acabados como as Gueuzes e Krieks. O resultado final sempre produz pouca espuma, como todas as bebidas que envelhecem em barris de madeira. Seu sabor ácido, aromas e retrogosto, fazem da lambic um produto complexo que se diferencia de todos os demais tipos de cerveja.

Barris, barris e mais barris. A marcação aí significa que no barril há uma Lambic (L) que fez parte do 37º lote da produção. O da esquerda é transparente para podermos ver o que acontece durante a fermentação.
Na sala 5b é onde acontece a elaboração do produto final: a Gueuze. Cada produção de lambic resulta em cervejas levemente diferentes em sua acidez, amargor e suavidade. Para elaborar a Gueuze, o mestre cervejeiro mescla lambics de um, dois e três anos. As jovens trazem o açúcar natural para o processo de champanhização na garrafa e a de três anos o buquê e a finura. Na Cantillon, o mestre cervejeiro tem a importante função de provar o produto de dezenas de barris, dos quais selecionará 5 ou 6, para produzir uma cerveja Gueuze que tenha o caráter da cervejaria.
Na transferência entre os tonéis, a cerveja ganha turbidez devido as leveduras mortas que ficam em suspensão. Estas são eliminadas em um processo de filtragem que retém as partículas, mas não o açúcar necessário para a refermentação na garrafa.
Uma tradição é a mistura à lambic de frutas regionais como cerejas, framboesas e uvas. No verão, entre o final de julho e início de agosto, se mesclam 500 litros de lambic de dois anos com 150 quilos de fruta. A maceração dura pelo menos três meses para que a cerveja consiga extrair o sabor, cor e açúcar da fruta. Após esse período é adicionado uma terceira parte de lambic jovem para a champanhização. A cerveja então é levemente filtrada e engarrafada. A fruta adiciona seu sabor e aroma a cerveja que ainda conserva o caráter ácido.
Uma coisa curiosa na Cantillon, e provavelmente em outras cervejarias que produzem lambics, são as teias de aranha que você vê pelos cantos da cervejaria. No verão, as remessas de frutas que a fábrica recebe atraem muitos insetos e já que os inseticidas são nocivos à cerveja, o controle biológico é feito pelos aracnídeos.
Na sala 6 é onde é feita a limpeza dos barris. São três fases: a manual, a com vapor (onde se elimina toda a vida microrgânica que há na madeira) e a mecânica (com água quente).
A sala 7 é a do engarrafamento. A cerveja desce dos tanques de aço inoxidável do piso superior, flui para a máquina e são armazenadas em vasilhames de 375ml e 750ml. Rolhas naturais de cortiça e uma tampinha são utilizadas para o fechamento. A produção se dá ao ritmo de 1.200 garrafas por hora. Podemos ver também por ali muitos barris de chope, para onde vai também parte da produção.
Na sala 8 fica a Adega. Aqui as garrafas são armazenadas em nichos, horizontalmente, por onde permanecem por muitos meses. Nesse momento é que acontece a refermentação na garrafa, o dióxido de carbono satura o líquido e a lambic se transforma em uma Gueuze. O mesmo acontece com as cervejas de frutas. A refermentação dura pelo menos 6 meses.
Em uma boa adega, uma Gueuze autêntica e tradicional pode envelhecer mais de 25 anos. Cada nicho comporta 13.500 garrafas e, em média, permanecem na cervejaria cerca de 80.000 garrafas. Também em média, uma garrafa fica por volta de 3 anos na adega.
O pessoal da Cantillon se orgulha do produto que produz. Dizem que, comparados com as Ales e Lagers, os procedimentos para a elaboração das lambics tradicionais são muito custosos. Por essa razão, muitos fabricantes produzem atualmente gueuzes e cervejas de fruta para o consumo de massa pensando na redução acentuada de custos. Assim “lambics modernas” são feitas em poucas semanas, com a utilização de xaropes de frutas, aromas, açúcar e saturação de CO2. Surgem aí muitas famosas cervejas doces frutadas. Já a produção tradicional é pouco rentável e não está adaptada ao gosto padronizado da alimentação padrão dos dias de hoje.
A Cantillon fixou seu objetivo na produção da lambic tradicional, feita a partir de água, trigo, malte de cevada, lúpulo, leveduras selvagens e no método natural de fermentação espontânea. Desde 1999 elabora suas cervejas unicamente com cereais da agricultura orgânica e se aproxima ainda mais das origens da produção cervejeira.
Durante os anos de 1960 e 1970, reduziram-se drasticamente as cervejarias tradicionais de lambic em toda a Bélgica. A partir da década de 1990, se viu uma retomada da alimentação de qualidade em todo o mundo e a cerveja tomou o mesmo rumo. Houve o ressurgimento da cerveja artesanal em muitos países e hoje a demanda por produtos de qualidade supera em muito a capacidade de produção da Cantillon. A cervejaria faz 1.700 hectolitros em uma planta de 2.000m² por temporada. Esta é a capacidade máxima e, como querem manter toda a experiência adquirida com a tradição, não pretendem aumentar o volume.
Quando terminamos a agradável visita ao Museu Gueuze de Bruxelas, somos convidados a nos dirigirmos ao bar, ao lado da entrada principal, para degustar as três cervejas a que o ingresso nos dá direito. Provei então:
– um cálice de Lambic de um ano tirado diretamente do barril. Ácida, seca e com pouquíssima espuma.
– a Gueuze: com um pouco mais de espuma, levemente turva, mais “aveludada”, mas quase tão ácida e seca quanto a lambic anterior.
– Kriek: produzida com cerejas, mantém o aroma cítrico da fruta, mas nada do seu dulçor. Uma cerveja carbonatada pelo processo de champanhização. Ácida, azeda e bem seca.
Como minha esposa me acompanhou em todo passeio, mas não bebe, fiquei com os seis cálices só pra mim, J. E se você é um cara que não se importa com sobras, poderia beber os copos de muita gente desavisada que vai visitar a cervejaria, mas não faz a mínima ideia do sabor que cerveja reserva. Olhando parte da galera ali vemos muitas caretas e taças largadas pela metade sobre as mesas.
São cervejas muito complexas que exigem do degustador o que eu chamaria de treino. Horas copo para formar opinião e conseguir perceber e julgar todas as sutilezas que formam uma boa lambic. Eu ainda pretendo chegar lá!
Este é o catálogo completo de cervejas da Cantillon:
Gueuze: mistura de lambics de um, dois e três anos, refermentadas na garrafa.
Kriek: masceração de cerejas (schaerbeek) com lambic de dois anos. Também é refermentada na garrafa.
Rosé de Gambrinus: igual a Kriek, mas com framboesas no lugar das cerejas.
Vigneronne: mescla de lambic com uvas moscatel brancas.
Saint-Lamvinus: mescla de lambic com uvas escuras do tipo Merlot de Bordeaux.
Fou’foune: mescla de lambic com damascos da variedade Bergeron.
Grand Cru Bruocsella: lambic de três anos selecionada pela qualidade de sua coloração, aroma e buquê. Segundo o BJCP (Beer Judge Certification Program 2015), é a única versão engarrafada de uma Lambic prontamente disponível para consumo.
Iris: feita apenas com malte pale ale. Também leva lúpulo Saaz fresco.
Faro: lambic com adição de açúcar candi (cristalizado) e caramelo. Essa cerveja adoçada não pode ser conservada por mais de três ou quatro semanas sob o risco da garrafa explodir devido a refermentação.
Lou Pépé (produção especial): feita a partir de uma única lambic e com a adição de quase o dobro de fruta de outras fruit lambic.
Mamouche: maceração a frio de flores frescas de sabugueiro com lambic de dois anos.
Cuvée Saint-Gilloise: maceração a frio de lúpulo Hallertau em uma lambic de dois anos. Cerveja feita para o Saint Gilloise, tradicional clube de futebol de Bruxelas e time de coração da maior parte da família Cantillon.
Além das bebidas, a Cantillon também produz alguns alimentos a base de suas cervejas como as Geleias de Gueuze, Kriek e Rose de Gambrinus ou os Queijos feitos a partir de Gueuze (10 litros) e Leite (550 litros).
Se você ama cervejas e estiver por Bruxelas, lembre-se de visitar a Rue Gheude 56, o endereço mais ácido da cidade.
Fonte: Material de apoio ao visitante, divulgação e pesquisa do Brussels Gueuze Museum.
Texto muito bom, parabéns!
Cantillon primando pela qualidade e respeito.
Valeu Julio. A Cantillon é fiel a seus princípios e dá pra perceber isso lá dentro. Vale a visita. Abs!
Ótimo Anselmo, mais um bom guia e que inclusive vai servir para um amigo que irá na próxima semana para Bélgica.
Como ele vai ficar só em Bruxelas, provavelmente, isso pode entrar no roteiro dele. A dica já foi passada, vamos ver como ele vai aproveitar.
Abraços
Valeu Luquita. Se ele é um interessado em cerveja, não pode perder a visita. Mas além disso, tem muita coisa legal pra se fazer em Bruxelas. Abração!
Então ele ta indo pela cerveja rs.
Anselmo,
Muito bom o texto, principalmente o detalhamento dos métodos da Cantillon e dos estilos de cerveja.
E acho que muita gente acaba visitando no mesmo embalo que visita outras cervejarias da região, achando que vai encontrar uma dubbel, tripel ou blond ale…. e acaba conhecendo cervejas muito ácidas para seus paladares…
E de fato para conseguir aproveitar 100% de uma cerveja desta, vc tem que saber oque esperar…. até para quem bebe com frequencia, enfrentar um estilo que foge do seu padrão de consumo é dificil.
Abç
Guzzon
Valeu Guzzon,
Acho exatamente isso também Guzzon, “enfrentar o estilo” desconhecido. É esse o desafio de quem diz que gosta de cerveja.
Abração!
Fala Anselmo!
Muito legal a 2a parte do tour. Realmente esclareceu minha dúvida da semana passada e também descobri agora qual era aquela palavra que vc disse que eu ia corrigir a pronúncia. Como não sei falar francês, deixa quieto hahaha
Essa semana vasculhei o site da Cantillon e descobri que as cervejas deles são orgânicas, como vc comentou agora também. Quanto tomei a Gueuze 100% Bio deles achei que era uma versão orgânica da gueuze, mas não, essa é a gueuze deles e ponto! As versões com frutas não levam o rótulo de orgânica ainda, porque não dá para comprar fruta orgânica em quantidade suficiente para fazer a cerveja.
Enfim, muito interessante toda a história, os processos e tals. Espero algum dia voltar em Bruxelas e visitar a fábrica, deve ser legal demais!
Abraço!
E aí Daniel!
Valeu!
O que me salvou o francês na viagem foi o Google. Fomos à um bairro perto da estação BockStael (lá na direção do Atomium), redondeza só de imigrantes e resolvemos almoçar em um restaurante bem pequeno que parecia recém inaugurado. A placa dizia comida familiar ou algo assim. Lá dentro, só uma muçulmana de origem marroquina que só falava francês. Nos comunicamos via celular. A comida era ótima.
Antes da visita também achava que a 100% Bio era uma versão especial, mas na verdade é a descrição que ela passou a ter.
Fico revendo as fotos e já dá saudade.
Abração!